Powered By Blogger

domingo, 18 de agosto de 2013

Poema: Maya


      MAYA





A aparição do espelho é realidade sólida.
A toxina no fígado também é sólida.
Os objetos que caem atrás da estante também são reais e existem.
Aquele vento que sacode a cortina da janela da sala é real.
O delicadíssimo néctar das flores existe.
As substâncias tóxicas lançadas no ar são reais.

A toxina está lá no fígado.
O clipe caiu atrás da estante.
A aparição está no espelho.

O deslizar da urna para dentro da carruagem é apenas um som, mas existe.
A ausência existe e corporifica.
Tudo isso é sólido, solitário e solene, inclusive a aparição.

O que não existe são as recordações.
A percepção do mundo é apenas recordação.
Logo, não existe percepção do mundo.

Para atravessar o espelho, tem que ser Alice, Alice existe.
A aparição do espelho não é apavorante.
Apavorante é a ausência.

Poema: Sr. e Sra Burns


 SR. E SRA. BURNS


Todos os dias, pontualmente às 18h30min, o Sr. Burns chega em casa, após exaustiva jornada de trabalho.

Pontualmente, às 19h30min, a sra. Burns já está com o jantar servido.

Rigorosamente às 20h30min, a cozinha já está brilhante e impecavelmente arrumada. O Sr. e a Sra. Burns estão no escritório, fazendo ponderações sobre o orçamento doméstico.

As 21h30min, o Sr. e a Sra. Burns já estão com seus trajes de dormir e seus chinelos beges, sentados em seus confortáveis sofás, assistindo atentamente a um programa religioso na TV. O único compatível com a elevada moral do Sr. e da Sra. Burns.

Exatamente às 23h30min, o Sr. e a Sra. Burns já estão posicionados em sua cama Box: ele à direita e ela à esquerda. Ela se deita por último e desliga o abajur de cor azul clara. Dão-se um boa noite, viram-se e imediatamente pegam no sono.

Estão agora de volta ao único e verdadeiro encontro.


Inexoravelmente.

Poema: A náusea tem etapas?


 A NÁUSEA TEM ETAPAS?



A primeira etapa é como um trator sobre a sua cabeça.

Todos os rostos são os de Francis Bacon.
Todos os andares são os de Nosferatu.
Todos os balançares de cabelo são os da Medusa.
Todas as gesticulações são as de Alien.
Todas as palavras são as de Augusto dos Anjos.
Todos os sons são os da ambulância.
Todos os cheiros são os do esgoto.

Da segunda etapa em diante, o choque já não vem mais, apesar do horror aumentar e ficar agudo.

A boca ainda está cheia de dentes?
A cabeça ainda tem fios?
As mãos ainda carregam o fardo?
Os pés ainda suportam tudo?
As narinas ainda puxam o veneno?
Os olhos ainda não se fecharam?
O sexo ainda reverbera?

Graças a Deus, assim veio o cheiro de flores.
Graças a Deus, assim veio a cera chorosa das velas.
Graças a Deus, assim veio o silêncio.

Poema: Histórias Ordinárias


Edgar Allan Poe



HISTÓRIAS ORDINÁRIAS


As Histórias Extraordinárias de Poe são agora ordinárias.
Ninguém mais precisa ler Poe, ele está envergonhado.
A casa de Usher caiu em Manhanttan em 11 de setembro de 2001.
A polícia ainda não sabe qual é a cara de Jack, o estripador; mas a de Misael Bispo, sabe.
A laranja é mecânica porque os laranjais foram envenenados.


Arrastaram um menino de 6 anos pela avenida.
Arrastaram uma cachorrinha prenha pela avenida.
Laçaram, arrastaram e destroncaram um pobre bezerro pela arena (e ganharam 100 mil de prêmio para isso).
Jogaram uma menina de 5 anos pela janela.
Incendiaram um índio na rua só de brincadeira.


HISTÓRIAS OR-DI-NÁ-RIAS.


Porque ordinários são Jason e Fred Kruger: viraram brinquedinhos.
Ordinário é o chapéu azul do General Custer.
Ordinário é o bisturi do Dr. Josef Mengele.
Ordinário é o sangue no carro dos Nardoni.


Outro dia, Norman Bates foi visitar Chico Estrela e Guilherme de Pádua mandou lembranças aos dois.
O dr. Hannibal, o canibal, é o novo analista do goleiro Bruno.
Agora sim, Zeus pode mandar libertar Kraken.












MANUAL DE ACROBACIAS




Dedicado a todas as espécies de animais vítimas de maus tratos, torturas e toda sorte de barbáries impostas direta ou indiretamente pelos seres humanos.



Eu sou o acrobata da jaula dos fundos, porém todos me vêem.

Vou deixar minhas garras à mostra na grade e me contorcer preso às algemas que te livram das minhas unhadas e dentadas bruscas, porque você é fraco e covarde mesmo parecendo ser o preferido do espetáculo de Deus.

Se eu escapar daqui, vou sim arrancar ferozmente esse sorriso do seu rosto triste, pusilânime; é como se você quisesse ser o próprio Deus.

As tochas estão apagadas e vocês não têm fósforo.

Não adianta você tomar dimetiltriptamina, a sua imbecilidade explodirá sem nenhuma discrição.

Vou deixar minhas presas à vista na esperança de que alguém tenha medo e todos se afastem.

Eu sou o acrobata torturado da jaula dos fundos, porém todos me vêem. O ar que respiro é diferente do seu, porque você pensa que é superior a mim.

Mas eu sou o uivo que arrebenta seus tímpanos e o urro que lateja em suas tripas.

Entre um passo e outro, você era eu ontem.

Uma espera na fila do circo com suas crueldades e cruezas, ingressos alfanuméricos, nenhuma esfinge, um terror. Um terror. Repita comigo: só terror.




Esta é a minha versão do poema Manual de acrobacias, do poeta Carlos Augusto Lima. Para ler o poema original, acesse o blog www..memoriaeprojeto.wordpress.com.